Para o diretor de criação da Lacoste, Christophe Lemaire, crise vai mudar o modo como as pessoas pensam o consumo e as roupas.
Toda uma era da moda está chegando ao fim, precipitada pela recessão econômica. Foi esse o sentimento que percorreu a temporada de desfiles do hemisfério Norte, encerrada na última semana.
Não foi uma sensação que atingiu apenas aqueles que observam a moda de fora mas também os que a constróem dentro das grifes, como o estilista Christophe Lemaire, diretor de criação da Lacoste. "A sociedade de consumo chegou ao fim de uma certa lógica", afirma Lemaire. "Para além da crise econômica, creio que as pessoas estão num processo de tomada de consciência, que começam a compreender que não se pode continuar nesse ritmo de consumo. É um suicídio coletivo".
Discreto e sofisticado, Lemaire, 44, é um estilista que merece ser observado com atenção. Ele tem realizado com sucesso o mais difícil dos trabalhos: é responsável pela renovação estilística por que passa a Lacoste nos últimos anos, sem transgredir os códigos essenciais desta marca clássica de sportswear, criada em 1933.
Com experiência na alta costura, na qual trabalhou para Christian Lacroix e Thierry Mugler, Lemaire está na Lacoste desde 2002. Paralelamente, mantém sua grife própria, com uma loja no Marais, em Paris. Nas horas vagas, é um leitor voraz, fã de Joris-Karl Huysmans (1898-1907), e um cinéfilo apaixonado por Eric Rohmer. Em suas coleções para a Lacoste, a sutileza, o rigor e o pragmatismo são os instrumentos que o ajudam a equilibrar tradição e mudança, elegância e descontração.
Com seu trabalho, a Lacoste renovou suas silhuetas, ganhou charme contemporâneo e expandiu de maneira exuberante sua paleta de cores -Lemaire é um colorista de mão cheia. Na entrevista a seguir, feita em Nova York, onde a Lacoste desfila, ele explica porque acha que uma época da moda acabou -e outra está começando.
FOLHA - Por que a sua nova coleção foi baseada no fotógrafo Jacques-Henri Lartigue (1894-1986)?
CHRISTOPHE LEMAIRE - As imagens dele foram as primeiras coisas que me vieram à cabeça quando comecei a trabalhar para a Lacoste. Há muita coisa em Lartigue que é também do universo da grife. Ambos pertencem à mesma época, estão ligados àquela alta sociedade francesa liberal, que já viajava bastante, praticava esportes, o que era muito moderno. Foi uma idade de ouro da França e ao mesmo tempo já era a decadência.
FOLHA - O estilo Lacoste precisa sempre ter alguma referência retrô, como no caso de Lartigue?
LEMAIRE - Não necessariamente, mas há um charme retrô na Lacoste e ele não é um problema. Isso ocorre porque se trata de uma marca clássica, no bom sentido do termo.
FOLHA - O que o sr. pode e o que não pode fazer quando deseja modernizar o estilo da marca?
LEMAIRE - Curiosamente, as principais interdições sou eu mesmo que as coloco. Para mim, fazer a direção artística de uma marca como a Lacoste é impor um vocabulário estilístico, definindo as coisas que pertencem e as que não pertencem ao universo da grife. Então, sou o mais exigente, porque penso que, no longo prazo, é assim que escreveremos a singularidade e a força da Lacoste.
FOLHA - Pode dar um exemplo?
LEMAIRE - Sim. Às vezes, o departamento comercial me diz: "Está na hora de fazer estampas florais, de usar botões dourados, de fazer isso e aquilo...". Eu respondo: "Mas isso não é a Lacoste. Não faremos".
FOLHA - O sr. pode mudar alguma coisa na famosa camisa polo?
LEMAIRE - A polo clássica é intocável, pois é vendida aos milhões, a cada hora. Seria estúpido mudar. Por outro lado, paralelamente, posso inventar outros modelos. Como você viu no desfile, a logomarca apareceu ora maior, ora menor.
FOLHA - Por que as cores da logomarca não podem ser alteradas?
LEMAIRE - Era o meu propósito, quando entrei para a Lacoste. Queria fazer crocodilos de todas as cores. Mas por razões legais, pois há muito pirataria, não podemos. A família Lacoste também não está de acordo com as mudanças. Mas, como sou muito teimoso, insistirei.
FOLHA - Por que a Lacoste, que é uma das mais famosas marcas francesas, desfila em Nova York?
LEMAIRE - A razão principal é que, em Nova York, podemos mostrar a moda feminina e masculina ao mesmo tempo, e os jornalistas de ambos os setores estarão reunidos na cidade. Além disso, por ser uma marca de sportswear, achamos que seria melhor compreendida em Nova York do que em Paris, onde as pessoas sempre esperam algo mais experimental.
FOLHA - O sr. trabalhou para a alta costura. Existe futuro para ela?
LEMAIRE - A alta costura acabou. Seu período áureo foi entre os anos 1920 e 1960, quando havia uma aristocracia de gosto que tinha dinheiro. O problema hoje é que as pessoas têm dinheiro, mas não têm gosto.
FOLHA - Como vê a moda, hoje?
LEMAIRE - O que sempre me irrita na moda é esta espécie de histeria, de condicionamento midiático e comercial que consiste em dizer que você deve mudar suas roupas em todas as estações, que precisa ter sempre alguma coisa dita nova. Acho que a elegância não tem nada a ver com isso. Aliás, prefiro o estilo à moda.
FOLHA - Qual é a diferença?
LEMAIRE - A moda hoje não tem nada a ver com a sensibilidade, mas com a informação. As pessoas acreditam que ter informação é ter poder. Não é muito complicado passar o seu tempo vendo blogs, lendo a imprensa, mas penso que é inútil. Para mim, bom e enriquecedor é aprender a me conhecer, descobrir como é o meu corpo, qual é a minha personalidade, quais são os meus valores. A moda faz parte da cultura, no sentido forte do termo. Decidir o que quero ler e comer, como eu quero viver e me vestir -para mim, tudo isso faz parte da mesma coisa. Essa ideia de que estar na moda é comprar um guarda-roupa novo a cada temporada nunca me interessou.
FOLHA - A recessão pode mudar a relação das pessoas com a moda?
LEMAIRE - Sim, tenho a impressão que já começamos a voltar a pensar em termos de qualidade e autenticidade. É interessante como a nova geração procura coisas mais clássicas e adota uma relação mais atemporal com a moda.
FOLHA - A situação atual não favorece muito mais o consumo de roupas mais baratas?
LEMAIRE - Chanel dizia que nós somos muito pobres para comprarmos coisas de má qualidade. A ecologia é isso: obter qualidade. Vamos ter que comprar menos e melhor. É toda uma educação a ser refeita. Sei que vai levar tempo. Mas não temos escolha. Teremos que nos questionar sobre como vivemos e também como vestimos, revendo nossa relação com os objetos e o consumo.
FOLHA - Essa ideia não deve agradar muito aos comerciantes.
LEMAIRE - Evidentemente, se você diz isso para um homem de negócios, ele não vai gostar. Mas a sociedade de consumo chegou ao fim de uma certa lógica. Para além da crise econômica, creio que as pessoas estão num processo de tomada de consciência, que começam a compreender que não se pode continuar nesse ritmo de consumo. É um suicídio coletivo.
Fonte: Folha de São Paulo (16/10/2009)
Nenhum comentário:
Postar um comentário