domingo, 16 de maio de 2010

"O corpo" - a importância da aparência para as mulheres


Qual a importância da aparência no mercado de trabalho?

Com essa pergunta de abertura, o Jornal da Globo, do dia 30/03, chamava atenção para uma reportagem sobre o valor da aparência e da forma física na atualidade, com especial destaque para o caso brasileiro.

Com o intuito de pensar a aparência como uma riqueza que pode determinar ganhos em diferentes campos na sociedade contemporânea, a reportagem fez referência ao conceito de “capital erótico”, criado por uma pesquisadora britânica, para falar da importância de alguns aspectos físicos (beleza e “boa forma”) e de personalidade (carisma) para o sucesso nos campos profissional e afetivo. Como destacou o jornalista William Waack ao apresentar a matéria: “um nome novo para uma idéia antiga”. Idéia que já foi amplamente discutida pela antropóloga brasileira Mirian Goldenberg no livro “O corpo como capital: gênero, sexualidade e moda na cultura brasileira”, publicado em 2007 e reeditado, em versão revista e ampliada, no mês de abril.

A segunda edição traz como novidade um interessante prefácio da organizadora, que incorpora ao livro a discussão sobre o chamado “capital marital”, outro conceito chave criado por Mirian Goldenberg para pensar o valor do marido na vida das mulheres brasileiras.  A coletânea apresenta ainda um texto novo de apresentação, onde são feitas algumas considerações sobre  a relação entre  o corpo como capital na nossa cultura e os ideais de felicidade de homens e mulheres brasileiros. O texto, de minha autoria, foi escrito especialmente para apresentação dessa segunda edição do livro, tendo como referência as minhas impressões de campo durante a realização da pesquisa Happiness Brasil, que vem sendo desenvolvida pelo Observatório de Comportamento e Consumo do SENAI CETIQT nas principais capitais do país.  

Para saber um pouco mais sobre o valor do corpo e do marido na nossa cultura, conversamos com Mirian Goldenberg.



Mirian Goldenberg é Professora do Departamento de Antropologia Cultural e do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.     


Mirian, como surgiu e a que se refere o conceito de “corpo como capital”?

MG:       Venho construindo essa ideia desde 1998, quando que iniciei uma pesquisa na cidade do Rio de Janeiro.  O conceito surgiu a partir das minhas reflexões sobre as obras do sociólogo francês Pierre Bourdieu. Meu argumento central é que, no Brasil, determinado modelo de corpo, que Pierre Bourdieu chamaria de um corpo distintivo, é um capital: um corpo jovem, magro, em boa forma, sexy.

Acredito que, na cultura brasileira, determinado modelo de corpo é uma riqueza, talvez uma das mais desejadas pelos indivíduos das camadas médias urbanas e também das camadas mais pobres, que percebem seu corpo como um importante veículo de ascensão social. Neste sentido, além de um capital físico, o corpo é, também, um capital simbólico, um capital econômico e um capital social.  Eu e você elaboramos esta ideia no capítulo que escrevemos juntos para o livro Nu e vestido.

Um dado recente mostra a importância que o corpo adquiriu na cultura brasileira e demonstra como ele pode ser um importante capital. Em 2008, a revista norte-americana Forbes elegeu as 100 celebridades mais poderosas do mundo. Os únicos brasileiros da lista são a modelo Gisele Bündchen e o jogador Ronaldinho Gaúcho. Gisele, segundo a revista, faturou US$ 35 milhões em 2007, enquanto Ronaldinho faturou US$ 37 milhões. Não é à toa que as duas profissões são, atualmente, muito desejadas por meninos e meninas das camadas mais baixas, mas, também, das camadas médias brasileiras.


É dentro deste quadro que analiso a categoria “o corpo” que apareceu na pesquisa quantitativa que realizemos no universo das camadas médias cariocas. Surpresos com a recorrência desta categoria, em uma pesquisa que investigava os valores e comportamentos a respeito de temas como sexualidade, casamento e infidelidade, descobrimos que “o corpo” é um valor e, também, um verdadeiro capital no universo pesquisado.

Em sua pesquisa atual, “corpos, envelhecimento e identidades culturais”, você pesquisou algumas mulheres alemãs. O que você encontrou ao comparar as mulheres alemãs e brasileiras?

MG:       A partir da ideia do corpo como um capital, passei a refletir sobre o significado do envelhecimento feminino na sociedade brasileira. Em uma cultura em que o corpo é um importante capital, no mercado de casamento, no mercado sexual e no mercado profissional, como as mulheres vivenciam o envelhecimento? Quais os principais medos das brasileiras ao envelhecerem? Qual o significado do envelhecimento em determinados segmentos sociais?

Após uma viagem de dois meses pela Alemanha, em junho e julho de 2007, onde ministrei oito palestras em diferentes universidades com o título “O corpo como capital na cultura brasileira”, iniciei uma pesquisa na cidade do Rio de Janeiro com mulheres na faixa etária de 50 a 60 anos, das camadas médias e altas. Realizei sete grupos de discussão e, também, entrevistas em profundidade, assim como a aplicação de questionários com perguntas abertas. Comparando o discurso das brasileiras pesquisadas, com o de algumas mulheres que entrevistei na Alemanha, da mesma idade e também das camadas médias, pude perceber algumas semelhanças e diferenças interessantes para serem analisadas.


Em primeiro lugar, a ênfase na decadência do corpo e na falta de homem é uma característica do discurso das brasileiras. A ideia de falta, de invisibilidade e de aposentadoria só apareceu no discurso das brasileiras. As alemãs enfatizaram a riqueza do momento que estão vivendo, em termos profissionais, intelectuais e culturais. Consideram os cinqüenta um momento de grande realização e possibilidades, valorizam o trabalho, a saúde e a qualidade de vida que conquistaram. O corpo, para elas, não é tão importante, a aparência jovem não é valorizada e, sim, a realização profissional, a saúde e a qualidade de vida. Algumas me disseram que não compreendiam por que a mulher brasileira gosta de receber elogios e cantadas na rua. Uma me disse, enfaticamente: “você mesma é que deve se sentir atraente. Você não precisa de ninguém para dizer se é atraente ou não. É muito infantil esta postura. Eu sei avaliar se sou atraente ou não. É só me olhar no espelho. É uma falta de dignidade ser tão dependente dos homens”. Outra me disse que a personalidade é muito mais importante no jogo da sedução do que o corpo. Elas disseram que o que importa é a individualidade, a inteligência e a conversa. Uma das afirmações que ouvi recorrentemente das alemãs foi: “eu sou uma mulher emancipada”, não só economicamente, mas, principalmente, psicologicamente.

Uma das primeiras constatações ao comparar as brasileiras e alemãs pesquisadas, é que a emancipação da mulher alemã, no universo pesquisado, é bastante evidente. As mulheres que estou pesquisando são da geração pós-guerra e pós-movimento feminista. São mulheres que trabalham, independentes economicamente, algumas não têm filhos, escolha tão legítima na Alemanha quanto aquelas que têm filhos. São casadas com homens de idade semelhantes à delas, são divorciadas ou solteiras.

Você encontrou, entre as suas pesquisadas, algum aspecto considerado positivo no envelhecimento?

MG:       As brasileiras que pesquisei trabalham ou são aposentadas. Todas são ou foram casadas, todas têm filhos, todas já cumpriram (ou ainda cumprem) o papel de esposa e mãe. Os cinqüenta, para algumas das brasileiras pesquisadas, é um momento de libertação do papel de esposa e mãe, para “ser eu mesma pela primeira vez”, frase recorrente no discurso delas.
Enquanto emancipação foi a palavra recorrente das alemãs, liberdade foi o que as brasileiras disseram. Há ainda uma outra diferença, a emancipação das alemãs foi uma conquista de toda a vida, desde jovens. A liberdade das brasileiras parece ser uma conquista tardia, após elas cumprirem os papéis obrigatórios de esposa e mãe.

A frase “hoje eu posso ser eu mesma pela primeira vez na minha vida” foi repetida por muitas brasileiras que percebem o envelhecimento como uma redescoberta, altamente valorizada, de um “eu” que estava encoberto ou subjugado pelas obrigações sociais, especialmente no investimento feito no papel de esposa e de mãe. As ideias de reencontrar-se, reinventar-se, redescobrir-se apareceram muito entre as brasileiras, sempre associada ao fato de fazerem, hoje, as coisas que mais gostam: estudar, ler, conversar com as amigas, sair sozinha, ter tempo para si mesma, viajar ou, até mesmo, encontrar um novo prazer com o marido assumindo mais os próprios desejos, e não buscando agradá-lo.
Mesmo as que são casadas, sentem-se mais livres após os cinqüenta para “serem elas mesmas”. Algumas redescobrem prazeres e vocações deixadas de lado em função do casamento e da maternidade, retomados após os filhos estarem mais velhos.


As alemãs me pareceram muito mais individualizadas e independentes da figura masculina. Elas enfatizaram muito em seus discursos a realização profissional, o respeito e o reconhecimento que conquistaram no mundo do trabalho. Ouvi, durante muitas horas, relatos sobre as disputas que venceram em suas profissões. Já as brasileiras falaram a maior parte do tempo sobre o homem, seja pela presença dele em suas vidas, altamente valorizada e necessária para a sua satisfação, seja para reclamar de sua falta. Um dos fatos que chamou minha atenção foi que as brasileiras falaram pouquíssimo de seus filhos e, menos ainda, de suas atividades profissionais. É interessante destacar que, nos grupos que pesquisei, o fato de viajarem, conversarem com as amigas, saírem sozinhas ou descobrirem uma nova atividade (um curso de filosofia, um curso de pintura ou um grupo religioso), apareceu com muito mais destaque do que os filhos e o trabalho. Poucos foram os momentos em que falaram de seus pais ou mães e mais raros ainda os que falaram de seus netos, apesar de algumas serem avós.

Em minha observação comparativa destes dois universos, as alemãs me pareceram muito mais confortáveis com o seu envelhecimento do que as brasileiras. No Brasil, tenho observado um abismo enorme entre o poder objetivo das mulheres pesquisadas, o poder real que elas conquistaram em diferentes domínios (sucesso, dinheiro, prestígio, reconhecimento, e, até mesmo, a boa forma física) e a miséria subjetiva que aparece em seus discursos (gordura, flacidez, decadência do corpo, insônia, doença, medo, solidão, rejeição, abandono, vazio, falta, invisibilidade e aposentadoria). Observando a aparência das alemãs e das brasileiras pesquisadas, as últimas parecem muito mais jovens e em boa forma do que as primeiras, mas se sentem subjetivamente muito mais velhas e desvalorizadas do que elas. A discrepância entre a realidade objetiva e os sentimentos subjetivos das brasileiras me fez perceber que aqui o envelhecimento é um problema muito maior, o que pode explicar o enorme sacrifício que muitas fazem para parecer mais jovens, por meio do corpo, da roupa e do comportamento. Elas constroem seus discursos enfatizando as faltas que sentem, e não suas conquistas objetivas.

Qual é a relação entre os conceitos de “corpo como capital” e “capital marital” apresentado nessa segunda edição do livro?

MG:       É interessante observar que, tanto no discurso de vitimização quanto no de libertação, dois foram os eixos centrais das brasileiras pesquisadas: o corpo e a relação conjugal, mais especialmente o(s) casamento(s) de cada uma delas. O corpo foi tanto objeto de extremo sofrimento (em função de suas doenças ou decadência) ou de extremo prazer (em função da maior aceitação e cuidado com ele). Os parceiros amorosos foram, também, objeto de extrema dor (alcoolismo, machismo, violência, autoritarismo, egoísmo, abandono, rejeição, faltas) ou de extremo prazer (companheirismo, prazer sexual, cumplicidade).

Diferentemente das alemãs, as brasileiras centram o seu discurso na figura masculina, seja na falta de homem, seja na sua presença. As que se mostraram mais satisfeitas com suas vidas, entre as brasileiras pesquisadas, são aquelas casadas há muitos anos. Mesmo estas, disseram que os homens são mais frágeis, dependentes, acomodados, ingênuos, inseguros, imaturos e infantis. O interessante é que, em quase todos os casos, o marido é o principal provedor familiar, tendo uma renda muito superior à da esposa. Algumas brasileiras disseram que seus maridos ligam vinte vezes por dia para o celular, que eles ficam deprimidos quando elas viajam, ou que precisam delas o tempo todo. Os depoimentos enfatizam que “ele precisa muito de mim”, “ele não sabe ficar sozinho”, “ele precisa de mim para cuidar dele”.


Ao analisar os depoimentos femininos, é possível constatar que, além do corpo ser um capital importantíssimo no Brasil, o marido também é um capital, talvez até mais importante do que o corpo nesta faixa etária. Um marido, um casamento sólido e satisfatório, foi o que as pesquisadas mais valorizaram em seus depoimentos. Em um dos grupos realizados, uma mulher magra, bonita e com a aparência muito jovem disse que sentia inveja de uma outra pesquisada, por ela ter um casamento de trinta anos. O detalhe é que a segunda era gorda e com uma aparência muito mais velha do que a primeira. A magra disse: “Eu tive e tenho muitos namorados, mas não consigo ter um companheiro, um marido. Senti inveja quando você falou do seu relacionamento de trinta anos, eu nunca consegui ter isso, não sei porque”.


Utilizei, então, mais uma vez, as ideias de Pierre Bourdieu para criar um novo tipo de capital, que não teria peso nenhum para as mulheres alemãs, mas que parece ser extremamente importante para as brasileiras. Um capital que chamo de “capital marital”. Ter um marido é um verdadeiro capital para a mulher brasileira. Por outro lado, as brasileiras pesquisadas também parecem poderosas por, além de terem um marido, sentirem-se mais fortes, independentes e interessantes do que eles (mesmo que eles ganhem muito mais do que elas e sejam mais bem sucedidos em suas profissões). Portanto, em um mercado em que os maridos são escassos, principalmente na faixa etária pesquisada, as brasileiras casadas sentem-se duplamente poderosas: por terem um produto raro e extremamente valorizado no mercado e por se sentirem superiores e imprescindíveis para seus maridos.

Em uma cultura, como a brasileira, em que o corpo é um importante capital, o envelhecimento pode ser vivenciado como um momento de grandes perdas (de capital). Em uma cultura, como a alemã, em que os capitais mais valorizados são outros, como o profissional, o científico e o cultural, o envelhecimento pode ser vivido como um momento de inúmeros ganhos e de muitas realizações e, especialmente, de extrema liberdade. Liberdade também muito valorizada, ainda que tardiamente, pelas brasileiras pesquisadas.


Fonte:http://www.cetiqt.senai.br/blog/comportamento/?p=1115

2 comentários:

  1. Os conceitos são novos mas a questão é antiga.O corpo foi e sempre sera um capital. Lembro-me quando de uma entervista para emprego (eu tina 18 anos) o entevistador pediu para eu levantar e dar uma voltinha. Ele disse: voce é bonita, serve para a função.E isso foi na década de 60.Trabalho desde os 18 anos, sou aposentada e não dependo do marido. Ao contrário...

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  2. Conceição, realmente esse é um assunto bastante complexo e renderia muito...

    Obrigado pelo comentário aqui no über.

    Beijos!

    Fábio Monnerat

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